quinta-feira, 18 de novembro de 2010

A Mimese Duplicada

Era um menino estranho, não estava sempre na linha de frente das brincadeiras de criança. Tinha sempre uns assuntos perdidos, como se não entendesse o que se passava com a rapidez das coisas ao seu redor. Contudo, era um menino acima da média na escola, e não dava muito trabalho por não ser muito danado. O único estranhismo causado aos pais era o fato dele comentar sobre um amigo que eles nunca viam: por vezes, o garoto não podia ir almoçar com eles, nem pegar carona para voltar da aula. Nem telefone em casa tinha, para que os pais viessem a convidar a família do tão falado Mirrorildo para um jantar. Pois bem, como nenhum transtorno lhes causava, a função de omissão exercia papel maior, e os pais até permitiam que o menino dormisse na casa do misterioso amigo. Algo que nunca acontecera, pois sempre havia um motivo maior que não possibilitava esse fato. O menino era do tipo falador: conversava por horas sobre um mesmo assunto, principalmente se ele não dominasse o conteúdo. Ele tinha forte necessidade de mostrar algo aos outros, e quando ele não dominava o assunto, usava daquelas frases prontas que encontramos nas redes sociais ou mesmo nas figurinhas dos chicletes. Tinha pra ele que, pouco importavam os outros: ele tinha Mirrorildo, seu fiel amigo que era tão parecido com ele... Mas tinha um segredo que o menino escondia de tudo e de todos. Algo que mudaria sua vida. Se amigo não frequentava a escola, nem tinha uma casa ou uma família: ele só existia para o menino. Era um alter-ego, um amigo imaginário e as vezes, um grande aliado. Nos últimos tempos Mirrorildo tinha proposto ao menino três desafios, com a promessa de que ele apareceria para todos caso cumprise-as; alegando também que estava muito doente. O menino, sem duvidar topou, pois sempre era motivo de chacota quando falava de seu amigo que ninguém jamais via.
Mirrorildo sempre aparecia ao cair da noite, e nos últimos dias, vinha acorda-lo enquanto dormia, altas horas da madrugada. Na primeira noite ele o propôs que roubasse os pêssegos do bolo de aniversário de sua irmã, que faria uma festa no dia seguinte. Não pareceu ao menino algo tão arriscado, pois seus pais dormiam no outro andar e sua irmã, mais nova que ele, não acordaria em meio a madrugada. Porém, para o mesmo, seu amigo secreto exigiu que eles fossem retirados do bolo com uma faca de estrebuchar porcos, que ficava nos fundos da casa. Entendendo o plano, o menino pôs-se a andar levemente até chegar ao fundos da casa, e sorrateiramente pegou a faca, quase do tamanho de seu antebraço e seguiu para a cozinha. Caminho livre, o jovem abriu a geladeira e começou a retirar as frutas, uma a uma do bolo confeitado milimetricamente, quando ouviu um barulho próximo a geladeira. Olhou ao redor e não viu nada, então tratou de retirar logo os pêssegos e voltar ao quarto; porém por displicência o menino esquecera a faca suja junto ao bolo. Ao retornar ao quarto, Mirrorildo parecia em êxtase com a cena: o menino com o coração pela boca, mãos sujas de glacê e um monte de pêssegos a serem comidos. Propôs então, como segundo desafio - e pelo êxito no primeiro - que ele comesse todas as frutas imediatamente, até porque eram provas do seu mau feito. O menino assim fez, e num súbito voltou a dormir.
No dia seguinte os barulhos na casa e o choro de menina era insuportáveis logo pela manhã. Imaginou então que, já haviam visto o que acontecera. Desceu então o rapaz sagaz, com mochila nas costas, como se fosse sair para algum lugar aleatório. Ao chegar na cozinha deparou com uma cena que não esperava: sua irmã ensaguentada no colo de sua mãe, que além de cuidar dos ferimentos ainda brigava com a pequena, culpando-a pelo estrago no bolo. A faca caíra na perna da menina, causando um grande corte. Pois bem, pensou o menino - "dessa estou livre" - e ansiou pelo fim do dia, na expectativa que Mirrorildo voltasse. Passaram cinco dias e nada dele aparecer. O menino andava amínguo pelos cantos da casa, e seus pais já não sabiam mais o que fazer. Foram até o colégio e descobriram que, tal rapaz, nunca estudara naquela escola e nem em nenhuma do estado. Preocupados, resolvem voltar para casa, mas quando chegam, tarde demais: o menino havia saído e deixado um bilhete.

"Fui embora com Mirrorildo. Ele é o único que me compreende e vocês não acreditam nele, foram entrega-lo para a direção da escola por que não gostam dele. Mas volto, assim que ele puder se mostrar para todos. Ele está muito doente, eu preciso ajuda-lo. Os pêssegos eram parte do remédio. "

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- Era tarde da noite e eu não sabia por onde andava, Só sei que ao meu lado seu vulto me confortava por ser meu único amigo em vida. Prometeu-me que voltaríamos assim que eu cumprisse a terceira prova, portanto eu tinha ainda chance de mostrar a todos o quanto tu eras real. Percebi nesse momento que era muito parecido comigo: Olhos, cor dos cabelos, formato do  rosto. Era na verdade, idêntico, e isso me soava um tanto quanto narcísico, como numa história antiga que meu avô me contou dias antes de morrer. Foi então que num espelho d'água no parque você me pediu que olhasse a minha própria imagem e disse que eu era o seu reflexo. Mas eu pensei: não seria ele o meu reflexo? Talvez Mirrorildo refletisse um garoto de dezesseis anos, tratado até então como uma criança tola, inclusive totalmente comandado por seu único suposto amigo. Resolvi que isso deveria ter um fim, e se Mirrorildo só existia por minha existência e vice e versa, que não teria mais sentido continuar essa caminhada. Peguei a mesma faca da primeira prova e, antes mesmo que ele me disseste que essa seria a última, cravei com toda a força em meu corpo fraco e magro. Agora eu sentia e via toda a verdade, e que de tons de vermelho eram feitas as luzes que cercavam o lago sujo no qual eu caia lentamente, manchando de rubro tudo ao redor. Senti uma dor descomunal e chamei seu nome três vezes, na esperança que desfizesse tudo aquilo: em vão. Você aparece mais real que nunca, no fundo do lago, a se aproximar... Vi os cavaleiros enunciados no livro cristão e o mar de gente morta; vi as pestes tomarem conta do planalto e também a terra ser engolida por caos e destruição. Achei então que minha vida havia sido desperdiçada. Logo, entendi que não. Eu era a minha face inexistente no espelho da eterna melancolia. Morrer é melhor que viver eternamente sozinho consigo mesmo.

3 comentários:

  1. Oh! Ficou foda *.*

    Esse foi bem criativo e ficou muuuuito bom!

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  2. Incrivel, e de fato...de que vale a vida, quando de vive só?
    Parabéns, você é gênial.

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  3. Confesso que me segurei pra nao cair uma lagríma.
    rsrsrs. Falo sério.
    Passa uma certa melancólia.
    Gostei de verdade deste post, muito bom.

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